O impacto do Covid-19 sobre os contratos

Ricardo Botós da Silva Neves
Sócio Área Direito Empresarial
r.neves@monteironeves.com.br

O “Novo Coronavírus” – COVID-19 tem causado enormes problemas de saúde pública em todo o mundo, trazendo consigo reflexos nas relações jurídicas entre as pessoas.

Este memorando teve como razão consolidar nossas análises sobre questão, que neste momento, está sendo recorrentemente formulada por nossos clientes: a obrigatoriedade de cumprimento dos contratos ajustados antes da pandemia e que se tornaram excessivos ou impossíveis de ser cumpridos?

Para responder à questão acima alguns conceitos básicos sobre a alocação de risco no contrato e a interpretação de suas cláusulas são necessários.

1. ALOCAÇÃO DE RISCO

No momento em que um contrato está sendo negociado as partes levam e consideração a alocação de riscos, que representa a possibilidade de ocorrência de um evento futuro, que tenha impacto sobre as expectativas do contratante. Os riscos presumíveis são os mais variados, como por exemplo: (i) saúde e segurança do trabalho, (ii) ambiental, (iii) financeiro, (iv) legal, (v) do negócio, (vi) tecnológico, (vii) operacional, (viii) regulatório, entre outros.

Sob a ótica contratual, o risco está relacionado com a probabilidade de acontecimentos futuros e incertos, não causados pelas partes, que possam prejudicar o cumprimento das obrigações contratuais das partes contratantes. Com isso, quando da formalização do contrato as partes devem ter mapeados os principais riscos a que estarão expostas ao longo da execução do contrato, para com isso decidir a alocação, ou seja, a definição dos riscos que serão suportados por cada contratante. A correta alocação dos riscos no contrato reduzirá significativamente discussões futuras em caso de descumprimento contratual, por já estarem previamente delimitados os riscos de cada parte.

Portanto, os riscos definidos são aqueles relacionados a acontecimentos previsíveis que possam impactar de modo negativo o cumprimento do objeto do contrato ou das obrigações das partes.

2. REGRAS DE INTERPRETAÇÃO

Contudo, considerando que os contratos são obras humanas e, portanto, passíveis de terem lacunas é impossível prever todos os riscos a serem alocados em função das infinitas variações do futuro.

Por essa razão, a norma prevê meios para a interpretação e integração de contratos, que decorrem de lei e somente poderão ser utilizadas se não houver regra voluntária de interpretação contratual (regra prevista no próprio contrato) e que estão descritas nos incisos do §1º, do artigo 113 do Código Civil e no artigo 112 do mesmo diploma legal. Assim sendo, as regras voluntárias de interpretação são as acordadas pelas partes e, em princípio devem prevalecer sobre as regras legais de interpretação, por força dos artigos 113,§2º, e 421-A, §1º, Código Civil.

De outro turno, quando há lacuna no contrato devem ser lançadas as regras de integração que são divididas em: legais e as voluntárias.

As regras legais são aquelas como o próprio nome diz que decorrem de lei sendo aplicadas apenas quando não houver critérios voluntários em sentido diverso, ou seja aquelas que decorrem de acordo expresso das partes e devem ser aplicadas prioritariamente, afastando regras legais de integração em sentido diverso.

Com isso, em apertadíssima síntese resta apresentada o que é a alocação de riscos em um contrato e a forma pela qual um a avença deve ser interpretada.

3. POSSIBILIDADE DE REVISÃO E NÃO CUMPRIMENTO DE UM CONTRATO

Já se foi o tempo em que se entedia que uma vez contratado o ajuste era imutável. De fato o contrato faz lei entre as partes, mas em situações excepcionais as cláusulas e condições podem ser revisadas ou até mesmo, no extremo, o contrato ser rescindido. A “força obrigatória dos contratos” ainda vige no Brasil e é o que traz segurança jurídica para os contratantes e para toda sociedade. A preservação do equilíbrio entre os contratantes, mesmo em relações paritárias, o respeito à função social do contrato e à boa-fé objetiva estão acima da autonomia das partes ao contratar.

No período compreendido entre a data da formulação do contrato e o vencimento da prestação não há um “vazio prestacional”, ou seja mesmo antes do vencimento da obrigação o devedor tem prestação a cumprir, pois as partes desde o nascimento do contrato têm que praticar vários atos necessários para garantir, ao final, o cumprimento adequado da prestação, tudo à luz da boa-fé́ objetiva.

Portanto, uma vez que o contrato é formalizado o não cumprimento ocorre a “quebra do contrato”, que pode ser:(a) stricto sensu, também chamada de “quebra antecipada culposa do contrato”: é a quebra antecipada culposa ou (b) não culposa: é a resolução do contrato por caso fortuito ou força maior.

Para este trabalho interessa somente a hipótese em que o contrato é rompido antecipadamente em razão de fato superveniente (posterior e imprevisível) e que não fez parte do risco alocado, portanto, ocorrido sem por culpa da parte.

O pressuposto da quebra antecipada é antes do vencimento ocorrer um evento não previsível que torne o cumprimento do contrato, na sua exata dimensão impossível ou inútil ai incluído também o cumprimento dos deveres anexos, como o de proteção, segurança e conforto.

O evento imprevisível “pandemia mundial do coronavírus” inegavelmente limitou a utilidade do objeto de vários contratos, tornando impossível o cumprimento na sua exata dimensão, mesmo que em alguns casos o cumprimento da prestação principal seja possível, mas os deveres anexos são inviáveis.

O tema é de relativa complexidade, motivo pelo qual alguns exemplos serão indicados para facilitar a compreensão:

Uma empresa contrata empréstimos e comprometendo a pagá-lo em “X” meses em parcelas no valor “Y”. A empresa assumiu a obrigação considerando a geração de caixa que tinha no momento da formalização do contrato. Neste momento, por conta da imposição de fechamento dos negócios para evitar a circulação de pessoas e propagação do vírus, a empresa devedora está na situação de não conseguir honrar o pagamento do empréstimo na forma inicialmente ajustada, por não ter a mesma geração de caixa. Este é o caso de necessidade de revisão do contrato, para que seja adequado o valor da parcela e o prazo do pagamento à capacidade de geração de caixa atual da devedora.

Outros exemplo é o da empresa que contratou uma operação em moeda estrangeira, considerando o risco regular de valorização ou desvalorização da moeda alvo (lastro). Contudo, por conta do evento imponderável de uma pandemia de saúde pública a moeda de base sofre enorme valorização, torando, assim, o cumprimento da obrigação extremamente excessivo. Nesta hipótese seria perfeitamente possível a revisão do contrato.

Ainda, considere o caso de uma empresa de turismo que está sendo vendida, com a obrigação do comprador concluir o negócio desde que cumpridas obrigações precedentes pelo vendedor. O vendedor cumpriu todas as obrigações precedentes, mas como o setor de turismo foi fortemente afetado pelo Coronavírus modificando completamente o cenário do negócio. Este seria o caso de uma possível rescisão do contrato, pois o cumprimento da obrigação se tornou impossível.

Outro caso. Uma pessoa loca um imóvel para que uma empresa instale um restaurante fast food, ficando contratado o pagamento do aluguel num percentual das vendas brutas do estabelecimento, com a garantia de um pagamento mínimo de “X” reais. O estabelecimento em razão da determinação de fechamento ao atendimento ao público tem redução em seu faturamento, passando a surgir a obrigação de pagar o valor mínimo, mas o locatário se nega a pagar o valor mínimo, propondo somente o pagamento do valor correspondente ao percentual do faturamento. Este seria o caso de possibilidade dupla de pleitos. O locador poderia pedir a rescisão, pois por um fato superveniente e alheio a sua vontade restou ao locatório impossível o cumprimento da obrigação mínima contratada. Por outro lado, pela mesma razão o locatário poderia requerer a revisão do contrato, para que em um período de tempo ficasse suspensa a cláusula de valor mínimo, pois se tornou excessiva.

Uma empresa contratou a fabricação de um equipamento de engarrafar para a instalação em uma nova planta de uma indústria de bebidas, ficando ajustado prazo certo de entrega, sob pena de multa diária para o caso de atraso por até “X” dias, quando então o fornecedor também iria responder por lucros cessantes e perdas e danos. O fornecedor não tem meios de continuar a produção do equipamento, pois teve de paralisar suas atividades por ordem das autoridade sanitárias. Nesta hipótese, em razão de fato superveniente poderia o fornecedor requerer a suspensão do prazo de entrega para ser retomado depois de normalizadas as suas atividades, evitando, com isso, o pagamento das penalidades.

Os exemplos acima são somente alguns dos inúmeros possíveis e tiveram por inspiração casos recentes analisados por nosso escritório.

Com isso, depreende-se que existem inúmeros contratos que perderam sua utilidade, pois o cumprimento do objeto,antes do vencimento, se tornou impossível por um fato superveniente e fortuito: a pandemia do Coronavírus. Com isso a depender da análise concreta do caso seria possível a quebra antecipada não culposa do contrato.

Entretanto, em homenagem ao princípio da conservação do negócio jurídico, se, no caso concreto, por um juízo de razoabilidade, for verificado que o contrato poderia ser mantido com alterações de suas condições, essa alternativa da revisão contratual deve ser escolhida no lugar da quebra do contrato.

As conclusões anteriores seriam as mesmas se o caminho escolhido para a análise fosse o da teoria da imprevisão, pelo qual o argumento sustentaria que, com os eventos originados pelo coronavírus vários contratos se tornaram excessivamente onerosos para uma das partes ou perderam a sua base de justificação.

O ambiente de desarranjo causado pelo Coronavírus autorizaria a quebra antecipada não culposa de contratos cuja utilidade tenha se esvaziado ou cujo cumprimento tenha se tornado impossível.

Contudo, no caso da obrigação ser possível, mas o seu cumprimento excessivamente oneroso para o devedor a via adequada é a revisão do contrato de forma a trazer novamente o equilíbrio entre as partes.

Neste momento de desajuste nas relações pessoais, com reflexos nos negócios, especialmente nos contratos, a revisão dos ajustes para verificar a possibilidade ou não do cumprimento de seu objetos ou a necessidade de revisão e negociação das condições inicialmente previstas é o melhor caminho para o enfrentamento e superação das questões que certamente estão surgindo e virão a surgir, o que precisa ser feito com apoio e correta orientação jurídica.

O escritório Monteiro & Neves Advogados Associados tem entre seus profissionais advogados habilitados e com longa experiência em contratos e está à disposição para a tomada decisões estratégicas para a superação de crises, razão pela qual permanece à disposição para eventuais questionamentos acerca da temática.

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